O Auto-Pensante

Women's mind,
by Asky Klafke
O Auto-Pensante
          filosofia barata & amizades caras

28/04/2025

Contentamento no que é


Neste mundo corporativo de constantes agitações, fortemente guiado pela cultura da superação, os períodos entre os contratos profissionais às vezes nos oferecem uma sabedoria surpreendente. Como contratado, atualmente no limbo familiar entre o contrato que terminou e o que ainda está por vir, me peguei refletindo sobre contentamento e propósito, além apenas do meu próximo contrato.

Em meu pequeno quarto-escritório, que também funciona como um estúdio improvisado, gosto de passar meu tempo livre lendo, ouvindo rádio, fazendo anotações e, ocasionalmente, arranhando e dedilhando meus instrumentos. Não chega a ser a minha casa da árvore, já que minha esposa costuma aparecer para um cafezinho!

Recentemente, um ex-colega de banda me enviou duas músicas para que eu colocasse um solo de guitarra. Não faço parte de uma banda desde que a última acabou, há alguns anos, preferindo compor minhas próprias músicas no computador; mas como ando com muito tempo ultimamente, decidi tentar! Fechei os olhos e deixei a música fluir. O vazio era como uma clareira na floresta que precisava do canto de um pássaro para completar a paisagem - a necessidade de um solo era iminente.

Quando estou no mood musical, gosto de passar um tempo com o violão antes de afiná-lo. Ao contrário dos músicos profissionais, para quem isso pode ser uma rotina, para mim, afinar um violão é um ritual que exige esforço e dedicação. Gravei minhas partes em algumas tentativas, aceitando as imperfeições como uma forma de honestidade. O feedback foi maravilhoso:

“Ed, você é uma lenda (ledge), e eu percebi que uma mistura dessas duas palavras é Edge! Coincidência? Acho que não!”

Tem quem diga que estou desperdiçando meu talento, mas encontro alegria em fazer o que gosto, como gosto. Inspiro-me nas histórias de músicos como Jimmy Page e Pat Metheny, que alcançaram a fama a partir de origens humildes. Mas, para mim, a música é apenas um dos muitos prazeres simples da vida, como cozinhar, escrever ou ir ao cinema.

Nossas ambições passam pela vida como navios distantes vistos da costa. Eu os observo, reconheço seu tamanho, mas não sinto a necessidade de subir a bordo. Há algo de libertador em apreciar o que está à sua frente sem perseguir constantemente o horizonte.

Amanhã será outro dia, outro solo, quem sabe? Talvez um e-mail oferecendo um novo contrato! Apenas mais um capítulo nessa sucessão de pequenos prazeres e responsabilidades que chamamos de vida.

E, enquanto isso, o violão fica na parede, sem glamour, sem admiração, sem drama. Como eu, escrevendo estas linhas, esperando o próximo momento em que eu possa ser útil, seja tocando violão, escrevendo um poema, cortando a grama ou iniciando um novo contrato. Sem esperar nada mais do que já é.

Talvez essa perspectiva seja valiosa não apenas durante o tempo de inatividade, mas também quando retornamos à nossa vida profissional agitada. Em uma cultura que nos empurra constantemente para a próxima conquista, há uma profunda sabedoria em parar ocasionalmente para reconhecer que, às vezes, o agora, exatamente como as coisas são, é suficiente.

É um tipo de presença plena que encontro tanto no momento em que me perco em um solo de guitarra quanto nos intervalos entre contratos - essa aceitação do presente em sua totalidade, sem ansiedade pelo que virá. Os antigos sabiam disso muito antes das palestras motivacionais corporativas.

Namaste!"

19/10/2024

reflexões estrangeiras II

Estou acostumado a alimentar-me
de nuvens e distância

~Eugenio Montale


Esta semana no trabalho, em uma das pausas para o cafezinho, um dos colegas romenos me perguntou: "Por quê é que você está sempre feliz? Me diga... eu sou mais jovem que você e não sou assim, sempre feliz!", e eu, rindo, respondi, "Deve ser o café!". Ambos rimos, pois sei que ele não toma café!

Outro colega, alemão e mais velho, reclamava de certos aspectos desafiadores do projeto, e me perguntou se eu conhecia uma expressão que dizia "ever decreasing circles", que ao pé da letra significa "círculos cada vez menores", mas a idéia é de um ciclo vicioso, em uma espiral descendente, dando a idéia de que as coisas não estão bem, e só tendem a piorar! Respondi que sim, que entendia o que a expressão queria dizer, mas que particularmente eu prefiria aquela outra que diz "o que quer que seja que você tenha que fazer, faça com sua melhor boa vontade, pois se você tem que fazer, provavelmente não há outra opção!"

Apesar das diferenças culturais entre brasileiros, irlandeses, alemães e romenos serem grandes, acabamos mais ou menos dentro de um certo limiar comum. Mas os italianos...

Esta semana aprendi mais uma italianice - e quando digo italianice, não há nenhum pejorativismo envolvido, que fique claro... Minha mãe e minha avó que o digam, e todos os meus antepassados italianos, mas para quem não foi criado na Itália, é impossível não reconhecer a limitação desssa italianices. A mais nova que aprendi, além das clássicas "não se coloca queijo ralado no macarrão com frutos do mar" e "capuccino só até as 10 horas da manhã", a nova é que os italianos não comem macarrão com frango!

Esquisitices gastronômicas a parte, há também a ilusão de que tudo que é italiano é melhor. E como preferências pessoais não é coisa a ser discutida (mas por vezes lamentada), nem vou mencionar a pizza brasileira, o vinho francês, o café colombiano, a cerveja belga, o presunto espanhol, a carne irlandesa...

Mas tudo bem. Os colegas italianos do escritório são divertidos... mesmo quando xenófobos, chauvinistas, grosseiros e mal-educados! Mas como aprende-se algo novo todos os dias, desta vez foi em um provérbio africano que me inspirei:
“Se você vai disparar a flecha da verdade, primeiro mergulhe-a no mel.”
Disposto a cuidar da organização do escritório, e arrumar alguns cabos de rede que estavam há muito pelo caminho, comecei a puxá-los daqui e dali, e eventualmente tive que me meter debaixo das mesas dos colegas, e um collega soltou essa pérola: "Fanculo, você está realmente testando a minha capacidade de sorrir hoje!", e eu, "não... eu estou testando a sua capacidade de colaborar! Afinal de contas, a sua vida também ficará mais agradável com essa arrumação!"

Pela cara dele, e pelo fato dele ter me oferecido sua tesoura quando me viu cortando o durex com a caneta, me diz que ele entendeu o recado!

20/08/2024

reflexões estrangeiras I

do Amor (em Lisboa, Portugal)


Um pouco mais de sol eu era brasa.
Um pouco mais de azul eu era além

~Mário de Sá-Carneiro in Dispersão


Os antigos filósofos gregos identificaram seis formas de amor: o amor familiar (storge), o amor de amizade ou platónico (philia), o amor romântico (eros), o amor-próprio (philautia), o amor de hóspede (xenia) e o amor divino ou incondicional (agape). Platão, em particular, explorou o conceito de amor nos seus diálogos, nomeadamente em O Simpósio, onde distingue o amor físico e um amor mais elevado, espiritual, que conduz à contemplação divina. Mas para Sócrates, o amor transcende essas seis formas, especialmente no que diz respeito à sua natureza e propósito.

Quando falamos de amor apenas, sem classificá-lo, precisamos de contexto para identificá-lo, e assim não estarmos sujeito a interpretações errôneas. Ao mesmo tempo que o amor de um filho pela mãe é diferente do amor do mesmo filho pela namorada, pelo irmão, pelo vizinho e pelo colega de classe, e pelo mendigo do centro da cidade, verdadeiramente não deveria ser diferente.

O que muito se confunde, na verdade, é amor com relacionamento. Amor verdadeiro é livre de associações, dependências e condições; é livre do sentido de ego, do "eu" individualizado. O Amor verdadeiro surge quando há uma dissolução do ego. E quando não há ego, o “eu” individualizado, não pode haver relacionamento, já que não há o que se relacionar. O eu sobra é o Amor!
 
O Amor está além do ego, além do eu, portanto é único e igual, incondicional, não afetado pelas preferências do ego, do eu individualizado. Uma vez estabelecido o Amor incondicional, e portanto Universal, aí ele pode ser aplicado de acordo com os diferentes relacionamentos do eu individualizado. Dessa maneira, um filho demonstra seu amor incondicional pela mãe de acordo com o relacionamento mão-filho; o mesmo indivíduo vai demonstrar seu amor incondicional pela namorada através do relacionamento namorado-namorada. O mesmo se aplica aos outros relacionamentos, em sua expressão do Amor Universal.

Pode ser difícil para algumas pessoas afastar-se do ego. O ego é o que nos diferencia, por assim dizer. É o que nos dá personalidade, caráter e presença no mundo. Como, então, separar-nos do que somos?

É porque acreditamos ser esse ego, esse corpo. Se partirmos de uma perspectiva menos pessoal e mais universal, se dermos um passo para trás - um passo metafísico - teremos uma visão mais privilegiada, que poderá, com um pouco de calma, paciência e boa vontade, nos ajudar a entender esse conceito que a princípio parece complexo. Pense nisso:

Um corpo em repouso permanece em repouso enquanto um corpo em movimento continua em movimento, a menos que uma força externa atue sobre ele (primeira lei de Newton sobre o movimento). Como exemplo, podemos dizer que podemos observar nosso corpo em movimento, de uma forma precisa. Para tal, devemos necessariamente não estar em movimento. Assim como o observador não é afetado pelo que observa, podemos dizer que não somos o que observamos; ou seja, para podermos observar-nos em constante mudança, não somos esse corpo, não somos nossos pensamentos, nem nossas emoções, já que tudo isso está em constante movimento. Assim como a Natureza propriamente dita, ou o dito ‘mundo manifestado’,  é observado, a pergunta é:
Quem observa?
Algo imutável, sem dúvida, algo único, apesar de toda a diversidade da experiência. Como não somos aquilo que observamos, já que percebemos movimento, este observador - a consciência que percebe o corpo - seria o "verdadeiro Eu", que deve necessariamente estar para além de todos os fenômenos observáveis, incluindo a mente e o pensamento.

Uma vez afastados do que nos caracteriza individualmente - o corpo, e com ele o ego - podemos avançar para tentar entender como, deste ponto de vista distanciado, podemos evoluir para a visão de que tal observador - o que chamamos de verdadeiro Eu - na verdade é um e único; o mesmo para mim como para você e para todos os outros seres vivos, não só humanos!

Seria como dizer, em termos religiosos, que é uma “alma única”, que aliás pode ser dito, se houver um preferencial religioso, embora eu use “verdadeiro Eu”, que para mim tem uma conotação mais filosófica.

O objetivo desta digressão filosófica é tentar nos posicionar antes de nós mesmos, e com olhos neutros, como se fixos em nossa própria nuca, observarmo-nos. Primeiro como se fossemos um outro além do nosso corpo, com os olhos do verdadeiro Eu; e depois como sendo únicos. Viemos todos da mesma fonte, somos todos frutos da mesma árvore.

Voltando para o Amor: uma vez que identificamos o observador, podemos tentar estabelecer como seria o Amor observado a partir deste observador - tranquilo, imóvel, inabalável.

Este Amor com "A" maiúsculo é altruísta e sem condições. É um “Amor por Amor”, sem esperar nada em troca, que não depende de ganhos materiais ou emocionais, que não depende de reciprocidade, tampouco aceitação. É como uma lei, a Lei Fundamental da Vida, que se instala no coração e toma todo o seu espaço! Expulsa o egoísmo e todo movimento do ego, todo sentimento direcionado a si mesmo, e prioriza o bem-estar dos outros acima do próprio.
“Todo o amor é expansão, todo o egoísmo é contração. O amor é, portanto, a única lei da vida”, já dizia Svami Vivekananda.
E essa dominação do Amor acontece de maneira natural e voluntária, afinal o Amor não pode existir sem liberdade. Não é possível Amor em condições de servidão ou escravatura, pois exige a liberdade de dar e receber sem constrangimento ou coação.

Amor como uma força poderosa e transformadora que é fundamental para o crescimento e a realização espiritual. E note que neste caso, espiritualidade não tem nada a ver com religião.

24/05/2021

Quem sou eu?

Um pouco mais de sol eu era brasa
Um pouco mais de azul eu era além

- Mário de Sá-Carneiro in Dispersão


No livro "Good Company - Sayings, Stories, Answers", Shantanand Saraswati (Shankaracharya da ordem Jyotir Math) nos diz que "Se você começar a ser o que é, realizará tudo, mas para começar a ser o que você é, você deve abandonar o que você não é."

E continua ... "Você não é aqueles pensamentos borbulhando em sua mente; você não é os sentimentos, em constante mudança; você não é as diferentes decisões que você toma, nem as diferentes vontades que você tem; nem aquele ego apartado."

Então ele pergunta... "Sendo assim, quem é você?"

A esta altura eu já estaria à procura do livro... mas para quem apenas quer a resposta, nua e crua, ele conclui que "Você é tudo no mundo e tudo no mundo é refletido em você, e ao mesmo tempo você é Aquilo - TUDO!".

24/02/2018

Quem é você?

Diferentemente do grandessíssimo Vinícius Cantuária em Lua e Estrela (não, não é do Caetano!), que pergunta à menina do anel, "quem é você, qual o seu nome?" a pergunta aqui é mais retórica... na verdade, caberia melhor perguntar "O quê é você?"

Quando afirmamos a posse de uma coisa, por exemplo, um relógio, dizemos "este relógio é meu", ou "este é o meu relógio". Fazendo isso, determinamos a existência de 2 coisas: um relógio e um dono.

Quem é esse dono?

"Um ser humano", diriam... E como seres humanos, identificamo-nos assim: este é o meu corpo, esta é minha mente (ou estas são minhas idéias), e isto é o que eu sinto (ou estes são meus sentimentos). Corpo, mente/pensamentos, coração/sentimentos...

Mas quem é este "eu"?

13/01/2018

Um sinal dos tempos?


Digamos que você está prestes a fazer uma viajem de avião. Depois de entrar e confortavelmente tomar o seu assento, a comissária de bordo anuncia que, através de uma votação entre os passageiros, será escolhido o piloto do vôo de hoje. "Por favor, peguem sua cédula no compartimento defronte ao seu assento. Nela encontrarão 3 opções de piloto: um pastor, muito religioso e com acesso especial e exclusivo ao divino; um artista de TV, muito conhecido por aquele reality show e também por sua contribuição na mídia em geral, e, finalmente, um piloto, que infelizmente nada mais faz além de pilotar aviões."

28/12/2017

De grupos e opiniões...

... ou o ab(surdo) não h(ouve)



Recentemente fui incluído num "grupo familiar" no WhatsApp. Familiar no sentido família extendida: além de minha tia e alguns primos meus por parte de mãe, tinha tios de minha mãe, primos de minha mãe, e agregados. Primos queridos, que pouco vejo devido à distância, outros ainda mais distantes, que vejo menos ainda, uns que só conheço de nome, e outros que nem de nome conheço. Mas todos parentes!

Como o objetivo era de manter a família unida, resolvi aceitar o convite, afinal, meus (novos) princípios filosóficos regem que não devo restringir meu amor a grupos (por exemplo, a família). Devo, sim, expandí-lo... inclusive à família!

Tudo ia bem, embora muitas mensagens fossem apenas repassadas de outros posts recebidos sabe-se lá de quem, do tipo "tenha um bom dia", "Jesus te ama", "ame o próximo", etc, tudo era muito positivo. Alguns escreviam mensagens originais, outros postavam informações úteis... tudo de bom, enfim! Até que resolveram fazer piadinhas políticas...

05/11/2017

estão jogando com você...

Deu na mídia semana passada (mídia real, de verdade... o bom e velho jornal) que o Facebook - que eu gosto de chamar de Livrocara - atingiu a marca de 2 bilhões de usuários por mês! É muita gente perdendo tempo nesse programinha, não?

Nada de errado com isso, alguém pode dizer... cada um perde seu tempo como quer! Afinal, a recém renovada "missão" do Livrocara é dar às pessoas o poder para construírem comunidades, e juntas tornarem o mundo mais próximo.

Quem engole tal balela?

A primeira pergunta, e bem básica, que vem à mente é Por quê? E para entendermos o Por quê da questão, devemos entender o Para quê e o Para quem!

03/05/2016

Rápido Tempo Lento

"Time is what keeps everything from happening at once"
Ray Cummings in The Girl in the Golden Atom, 1922.
Eis-me aqui novamente a falar sobre o tempo, um dos meus assuntos preferidos. Vezes falo do tempo perdido, vezes falo do tempo vivido. Assim poderia até chamar este post de "Em busca do tempo vivido", mas Proust provavelmente não aprovaria... Então chamei de rápido tempo lento mesmo.

A noção de tempo é inerente ao ser humano, todos sentimos, embora a ciência comprove que nossas percepções e sentidos são mestres em nos enganar. A percepção de tempo observada a partir de nossos sentidos é uma percepção puramente psicológica, e por isso mesmo cada um pode ter sua própria noção de tempo. Em certos dias, determinados eventos transcorreram de forma muito rápida, em outros, os mesmos eventos transcorreram de forma mais lenta, e expressões como "o tempo voa", "este ano passou depressa" ou "esta aula não acaba" soam bem comum a todos nós, mesmo que o relógio - aparelho especificamente construído para medida de tempo - mostre sua invariabilidade.

01/05/2015

O Tempo Perdido

by Henri Fantin-Latour

Às vezes me chamam de intolerante. Eu me acho seletivo.

Há muito deixei de ler bulas de remédios. Continuei com a literatura por um bom tempo, mas depois de alguns anos, só ficou a filosofia. Hoje só leio o que me interessa, e confesso, pouco tenho visto de interessante ultimamente.

O último grande romance que li foi À la Recherche du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido), de Marcel Proust. E, como sempre faço antes de ler romances de vulto como este, preparei-me como se preparam os bravos: dediquei algumas semanas estudando a vida de Proust e a época em que ele viveu, me aclimei, no tempo, na época, na cultura, na história... e só depois, armado de boa compreensão do que Proust possivelmente viveu, parti para o romance. Parece-me ser esta a única maneira de proceder-se. Qualquer outra abordagem parece-me inútil: como entender um romance se não se está a par das condições da época?